“Cada país tem o número de presos que decide politicamente ter”
Para o ministro da Suprema Corte Argentina, Raúl Eugenio Zaffaroni, a
redução da maioridade penal é também uma demanda mundial que se
relaciona à política de criminalização da pobreza
29/07/2013
Viviane Tavares
O
ministro da Suprema Corte Argentina e professor titular e diretor do
Departamento de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Buenos
Aires, Raúl Eugenio Zaffaroni, fala nesta entrevista à EPSJV/Fiocruz
sobre o direito penal na América Latina e como ele vem sendo usado para
fazer uma ‘limpeza social’. Segundo Zaffaroni, a demanda da redução da
maioridade penal e o combate às drogas seguem esta mesma linha de
criminalização e exclusão do pobre.
Por que o senhor defende a necessidade de uma identidade latina no direito penal?
Raúl Eugenio Zaffaroni – Nossos
países estão vivendo um crescimento da legislação repressiva, porém,
deveríamos caminhar para fortalecer a solidariedade pluriclassista em
nosso continente. Não podemos seguir os modelos europeus e, muito menos,
o norte americano, em que a política criminal é marcada por uma agenda
midiática que provoca emergências passageiras, resultando em leis
desconexas, que, passada a euforia midiática, continuam vigentes.
No
Brasil, estamos diante de um cenário em que a guerra contra as drogas
mata mais do que a droga em si. Como o senhor analisa isso?
É um fenômeno mundial. Quantos anos demoraria para que o México alcançasse a cifra de 60 mil mortos por overdose de cocaína? No entanto, já alcançou, em cinco anos, como resultado da competição para ingressar no mercado consumidor dos EUA.
Atualmente,
a grande questão do sistema penal brasileiro é a redução da maioridade
penal. Qual é a sua opinião sobre isso? O que deve ser levado em conta
para se limitar essa idade?
A redução da maioridade
penal é também uma demanda mundial que se relaciona à política de
criminalização da pobreza. A intenção é pôr na prisão os filhos dos
setores mais vulneráveis, enquanto os da classe média continuam
protegidos. Embora haja alguns adolescentes assassinos, a grande maioria
dos delitos que eles cometem são de pouquíssima relevância criminal. O
Brasil tem um Estatuto [Estatuto da Criança e Adolescente] que é modelo
para o mundo. Lamento muito que, por causa da campanha midiática, ele
possa ser destruído.
Na Argentina existe um modelo de responsabilidade penal para adolescentes de 16 anos. Como isso se dá?
Na
Argentina, a responsabilização penal começa aos 16 anos, de maneira
atenuada, e somente é plena a partir dos 18 anos. Não obstante, somos
vítimas da mesma campanha, embora os menores de 16 anos homicidas na
cidade de Buenos Aires, nos últimos dois anos, sejam apenas dois. A
ditadura reduziu a idade de responsabilização para 14 anos e logo teve
que subir de novo para 16, ante ao resultado catastrófico dessa reforma
brutal, como tudo o que fizeram, claro. Ninguém pode exigir que um
adolescente tenha a maturidade de um adulto. Sua inteligência está
desenvolvida, mas seu aspecto emocional não. O que você faria se um
adolescente jogasse um giz em outra pessoa na escola? Em vez disso, o
que você faria se eu jogasse um giz no diretor da faculdade de direito
em uma reunião do conselho diretivo? Não se pode alterar a natureza das
coisas, uma adolescente é uma coisa e um marmanjo de 40 anos, outra.
Muitos
especialistas consideram esse modelo atual de encarceramento dos jovens
falido. Por que a sociedade continua clamando por isso? Qual seria a
alternativa?
Não creio que a sociedade exija coisa
alguma. São os meios de comunicação que exigem, e a sociedade, da qual
fazem parte os adolescentes, é vítima dos monopólios midiáticos que
criam o pânico social. Melhorem a qualidade de vida das pessoas,
eduquem, ofereçam possibilidades de estudo e trabalho, criem políticas
públicas viáveis. Essa é a melhor forma de lidar com os jovens. O Brasil
é um grande país, e tem um povo extraordinário, o que vocês fazem é
muito importante para toda a região, não se esqueçam disso. E não caiam
nas garras dos grupos econômicos que manipulam a opinião através da
mídia. O povo brasileiro é por natureza solidário e de uma elevada
espiritualidade, quase mística. Não podem se deixar levar por campanhas
que só objetivam destruir a solidariedade e a própria consciência
nacional.
Como o senhor avalia o sistema de encarceramento?
As
prisões são sempre reprodutoras. São máquinas de fixação das condutas
desviantes. Por isso devemos usá-las o menos possível. E, como muitas
prisões latino-americanas, além disso, estão superlotadas e com
altíssimo índice de mortalidade, violência etc., são ainda mais
reprodutoras. O preso, subjetivamente, se desvaloriza. É um milagre que
quem egresse do sistema não reincida.
Enquanto não podemos
eliminar a prisão, é necessário usá-la com muita moderação. Cada país
tem o número de presos que decide politicamente ter. Isso explica que os
EUA tenham o índice mais alto do mundo e o Canadá quase o mais baixo de
todo o mundo. Não porque os canadenses soltem os homicidas e
estupradores, mas porque o nível de criminalidade média é escolhido de
forma política. Não há regra quando se trata de casos de delinquência
mediana, a decisão a respeito é política, portanto, pode ser arbitrária
ou não. Ademais, a maioria de nossos presos latino-americanos não estão
condenados, são processados no curso da prisão preventiva. Como podemos
discutir o tratamento, quando não sabemos se estamos diante de um
culpado?
Como podemos explicar este foco no tráfico de drogas como o principal mal da sociedade atual? Ele precisa ser combatido?
A
proibição de tóxicos chegou a um ponto que não sei se tem retorno sem
criar um gravíssimo problema ao sistema financeiro mundial. A única
solução é a legalização, porém não acho que seja possível. A queda
acentuada do preço do serviço de distribuição provocaria uma perda de
meio bilhão de dólares, no mínimo. Esta mais-valia totalmente artificial
entra na espiral financeira mundial, através da lavagem de dinheiro,
que o hemisfério norte monopoliza. Sem essa injeção anual, se produziria
uma recessão mundial. Como se resolve isso? Sinceramente, não sei. Só
sei que isso é resultado de uma política realmente criminal, no pior
sentido da palavra.
No Brasil, estamos vivendo um fenômeno com o crack.
Em estados como Rio de Janeiro e São Paulo, os usuários estão sendo
encaminhados para uma internação compulsória, uma espécie de
encarceramento para o tratamento. Como o senhor avalia isso?
Não sei o que é esse crack, suponho que seja um tóxico da miséria, como o nosso conhecido “paco”. O “paco”
é uma mistura de venenos, vidro moído e um resíduo da cocaína. É um
veneno difundido entre as crianças e adolescentes de bairros pobres,
deteriora e mata em pouco tempo, provoca lesões cerebrais. Como se
combate? Quem deve ser preso? Os meninos que são vítimas? Isso não pode
ser vendido sem a conivência policial, como todos os outros tóxicos
proibidos, porém, nesse caso, é muito mais criminal a conivência. Seria
preferível distribuir maconha. Isso é o resultado letal da proibição.
Nós chegamos a isso, a matar meninos pobres.
Existe alguma forma de combater a violência sem produção de mais violência por parte do Estado?
Na
própria pergunta está a resposta. Se o Estado produz violência não faz
mais que reproduzi-la. Cada conflito requer uma solução, temos de ver
qual é a solução. Não existe o crime em abstrato, existem, sim,
conflitos concretos, que podem ser solucionados pela via da reparação,
da conciliação, da terapêutica etc., esgotemos antes de tudo essas
soluções e apenas quando não funcionarem pensemos na punição e usemos,
ainda assim, o mínimo possível a prisão. Não podemos pensar em soluções
com a polícia destruída, mal paga, não profissionalizada, infestada por
cúpulas corruptas etc. Ou não estou descrevendo uma realidade
latino-americana? (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz)
Foto: Reprodução
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